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dona-redonda

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Desafio de Escrita CNEC 20/48 - 4/10 A Mensagem


redonda

 

Primeiro era só uma suspeita.

O dinheiro era pouco e tinha tido de alugar um quarto. Passara a ter um hóspede. Recomendara-lhe que dissesse aos vizinhos que era seu primo. Não podia dar motivo ao senhorio para a despejar e sabia que não podia sub-locar. Estava lá escrito no contrato. Nunca antes vivera com um estranho. Preferiria que fosse uma mulher. Mas quando se precisa não se pode escolher.

Ele dissera-lhe que trabalhava numa empresa. Divorciara-se recentemente e a mulher ficara com a casa. Era muito fechado excepto quando falava na ex-mulher: “Ela nunca trabalhou, só gastava o dinheiro dele e com outros homens.” Pingava ódio das suas palavras, os olhos ficavam-lhe mais brilhantes e pequenos atrás das lentes grossas.

Veio então a noite em que chegou muito tarde, quando ela já estava deitada. Ouviu‑o a lavar-se e a pôr de seguida a roupa que trazia na máquina de lavar. Na manhã seguinte comentou, melhor, determinou, que a partir dali ela não entrava mais no quarto dele, seria ele a limpar o quarto. Para se assegurar, fechava-o à chave quando saía.

Sobre a ex não disse mais nada, além de que desaparecera. E disse-o com um meio sorriso.

Ele não sabia que ela tinha outra chave e um dia não resistiu. Quando ele saiu para o trabalho foi lá. Parecia tudo em ordem, até que reparou que havia sangue nuns sapatos dele. Ele tinha morto a ex-mulher!

Nessa altura ouviu que ele regressava, ter-se-ia esquecido de alguma coisa. Não ia ter tempo de sair.

O bip de uma mensagem fê-lo parar na entrada e ele ir vê-la, deu‑lhe o tempo que precisava para sair e fechar a porta do quarto.

Também por mensagem chamou ela a polícia e fugiu da sua casa até que o prenderam.

Hóspedes assim nunca mais.

 

CNEC 48/20 - 3/10 A Professora


redonda

 

Gémea da feiticeira da Branca Neve, não da bruxa, mas da rainha madrasta, na beleza e severidade. Não sorria, não revelava qualquer enternecimento pelas ervilhas a seu cargo. A sala dividida para a 1ª e para a 2ª classes, num Colégio de Padres, reguadas permitidas, e a ameaça de ser levado ao sério-severo Padre-director para os reincidentes impenitentes.

Não tive infantil, por minha culpa – com dois anos insistiu a Educadora que poderia ficar com a minha irmã de cinco. Desatei num choro mal me vi abandonada. Deixou‑me à porta para dar a aula e fechei-os à chave na sala. Um aluno herói teve de pular pela janela para os libertar. Na saída, a Educadora concordou com a minha mãe, eu era muito pequena.

Aos seis, estava entusiasmada com a primeira classe. Finalmente ia aprender a ler e a escrever: pá, pé, piu, pua, pipa, pópó, pai e papá, a tia, tua tia, titi, a tia tapa o pote.

Aventuras sucessivas e intensidade face ao hoje descolorido, mas serão mais fáceis os dias com menos variações.

No então, castigava a Professora cada erro do ditado com uma reguada. Na sala o Nuno triste levava às vezes vinte, o Mário sorridente, nenhuma.

Ensinou-me a Paula como escapar à hora da tabuada. Já sabia até à dos cinco, mas seria uma aventura. Era só preciso antes pedir para ir à casa de banho. Pedimos as duas, fugimos as duas. Enganámos a bruxa-feiticeira, mas lá fora, sozinhas, nada acontecia.

Talvez fosse só professora, rodeada de bruxinhos alunos, barulhentos, infantis, a repetirem os erros uns dos outros, ano após ano, monotonia e cinzentismo, não era o que esperara, feiticeira desencantada.

Com ela aprendi a escrever e a ler, primeiro as legendas na televisão, depois os livros, os cinco e os sete e todos os outros.

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CNEC 48/20 - 2/10 - Com o P.D.


redonda

 

 

O mundo estava a passar por uma pandemia e fora deliberado o isolamento social para conter a contaminação e adiar o surgimento de casos mais graves.

Os mais frágeis deveriam ficar em casa. Os demais, sem trabalhos na saúde ou na alimentação aí deveriam permanecer, saindo apenas para comprar alimentos.

Sara tinha reservas de comida e de papel higiénico, e estava em casa sem sair há três dias, quando pensou que deveria comprar enlatados.

No entanto, no seu T1 de trinta metros quadrados, faltava espaço para os guardar.

Calhou reparar então nas garrafas de vinho que o seu ex deixara para trás quando resolvera juntar-se à amante. Prometera-lhe que os viria buscar e ela não duvidara sabendo como ele acarinhava a sua coleção, o tempo que passava a olhar para as garrafas, sendo que só em ocasiões muito especiais, é que abria uma. Comprara para as guardar um armário especial onde ficariam muito bem latas de salsichas e feijão.

Ainda pensou em ligar-lhe, mas sabia qual seria a resposta e se ele atendesse. Iria adiar, não se atreveria a sair para vir buscar as garrafas. Seria melhor nem falar com ele. Custou-lhe abrir a primeira garrafa e despejar o seu conteúdo na banca. Continuou a fazê‑lo e talvez algum do álcool tivesse vindo preencher e desinfectar o ar à sua volta – cheirava muito a vinho. Resolveu provar um copinho de cada.

Abria, enchia o copinho, bebia-o, tentando comparar com o anterior, despejava o resto do conteúdo e passava para a garrafa seguinte. Era até divertido. Riu-se. Percebeu então que não estava sozinha. Bem de mansinho o Pato Donald tinha entrado na cozinha e sentara-se num banquinho ao seu lado. Ofereceu-lhe um copinho, contou-lhe como fora a sua personagem preferida. Riram os dois contentes com a companhia.

Resolveu deitar-se e adormeceu.

CNEC 48/20 - 1/10 - Um olhar


redonda

Eram quinze para a meia-noite, de um Domingo chuvoso, quando teve de sair. O seu cão Jolie já lhe dera dois ou três latidos de aviso.

Estava frio lá fora, mas andar aqueceu-o.

Já no regresso, o Jolie insistiu em que seguissem pela direita. Perto do Posto de Abastecimento reparou no casal junto a um carro preto, de faróis ligados. Ele enchia o depósito, ela próxima dele, imóvel. Não falavam. O Jolie, normalmente afável com todos, mesmo com estranhos, rosnou baixinho na direção do homem.

Só por acaso o seu olhar encontrou o dela e leu nele um pedido de ajuda.

Não sabia o que poderia fazer. Ele o Jolie estavam já os dois entradotes.  Fixou a matrícula, tentando decorá-la. Percebeu que atraíra a atenção do homem. Ele posicionara-se à frente da mulher, escondendo-a com o volume superior do seu corpo.

- Você quer arranjar problemas?

- Não senhor, não quero.

- Então, ponha-se a andar!

Algo lhe deu coragem para permanecer e responder-lhe:                        

- Mas a senhora vem comigo.

Tinha a mão direita enfiada no bolso do impermeável, agarrou a pequena lanterna que lá guardava e empunhou-a, fê-la visível como uma arma. Percebeu que o outro hesitava, até que agiu. Empurrou a mulher para cima dele. Meteu-se no carro e arrancou.

Quando a mulher foi empurrada na sua direção quase caíram os dois. Depois ela abraçou-se a ele a chorar. O carro era dela e estava a ser vítima de um assalto ou algo pior. “Salvou-me” disse ela. “Salvou-a”, confirmaram os agentes da polícia quando chegaram e identificaram o individuo como perigoso.

Nessa noite demorou menos a adormecer e comentou antes com o Jolie, “salvámo-la.”